Para
meus Pais
“o arcanjo Miguel, quando
contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés”
Judas 9
Judas 9
Porque
Satanás desejaria o corpo de Moisés?
Porque
tomar aquele corpo envelhecido, cheio de memórias horrendas, de encontros
maravilhosos com Deus? Porquê sujeitar-se a ser confundido com ele, repetir
seus trejeitos e cheiros, imitar a sua voz? Pior; e se ele era mesmo gago? O
que poderia fazer um diabo gago?
Pergunta
óbvia. A mera pergunta induz a resposta: toma-se o corpo para se
parecer. Há muitas formas de se parecer com alguém, mas qual seria melhor
que tomar o seu corpo?
Desceu,
pois, o arcanjo Miguel, para contender com o diabo e disputar o corpo do
profeta. Também Deus queria aquele corpo, que era seu. Deus não queria só o
espírito, mas também o corpo. É claro, Deus não queria apenas impedir
que o diabo enganasse a outros por meio daquele corpo – engano possível apenas
se não conhecêssemos nada além de Judas nove. Deus queria o que era seu. Mas
também, o que era de Moisés; só o diabo quererá negar a identidade
de Moisés com o seu corpo, e o ponto é inimaginavelmente importante, a ponto de
conferir proporções cósmicas à batalha por ele.
Corpo é expressão temporal e
material do ser; superfície na qual o interno se torna visível, o profundo na
superfície, o símbolo de mim, que participa do que sou eu. Isso é o que o corpo
deveria ser; para isso Deus criou o corpo. Mas a queda destruiu seu nexo com
seus fins, e colocou o eu contra o eu, o eu interno contra o eu externo. A
primeira espiada em Romanos sete nos fará lembrar rapidamente a miséria de se
achar fraturado, de querer e não querer ao mesmo tempo, de buscar a própria
redenção por meio da autodestruição.
O
pecado separa barro e espírito, mata o sentido, afasta corpo de ser. Situação
deveras miserável; eu separado de mim e, como se não bastasse, figuras
infernais desejam alienar-me ainda mais de mim mesmo, tornar-me em dois e,
então, em outro, para usar-me contra mim. O que será que Moisés
pensou quando viu, de sua nuvem, o diabo lutando para apossar-se da sua
superfície, para conectá-la com uma outra profundidade?
Aluta
entre Miguel e o diabo pelo corpo de Moisés lembra-me a luta pelo sentido, no
campo da interpretação, e da própria teoria hermenêutica; ou melhor, a luta
pela forma do sentido; ou a luta pela superfície do
sentido que, não deveria mas, miseravelmente, é separada de seu coração, de sua
fonte semântica profunda.
Ora,
um calvinista, tipicamente, não se entregaria a este tipo de alegoria
fantasiosa, inventando sentidos com as imagens bíblicas. Eu, especialmente, que
por tantos anos defendi uma interpretação literal (embora não literalista)
das Escrituras – que ironia. Mas antes que os amigos torçam seus narizes contra
mim, quero desculpar-me de tão insólito uso do corpo de Judas,
que não quero roubar, de forma alguma. Meu exercício de imaginação não terá a
pretensão de significar o que Judas quis dizer, naturalmente. É claro que
não estou fazendo exegese. Ao menos, não exegese bíblica.
Talvez,
sim, exegese de um comportamento realmente diabólico, esse, de tentar roubar o
corpo dos outros, ora. Isso, de fazer roubo semântico, é outra coisa. Ladrões
de corpos, violadores de túmulos! Saqueadores criminosos esses hermeneutas que
querem usar a superfície dos outros para ganhar o amor dos homens.
Diabolicamente
enfiando-se nos braços, nos olhos e na língua que um dia foi de Moisés, e do
Espírito de Deus – de ambos – para dizer algo que não é mais a mentira
absoluta, que seria nada (em verdade, que não é),
nem a verdade, que disse Moisés, mas para dizer uma síntese perniciosa que
tem, corpo de verdade, mas espírito de mentira. É a
verdade vazia que tem o cheiro, as rugas, o pêlo e o timbre da verdade, mas que
é realmente outra coisa. E é difícil mostrar a mentira; afinal, se parece tanto
com a verdade!
Um
teólogo “diabólico” fará qualquer coisa para ser amado como Moisés, ou como
Jesus, ou como Paulo, ou como os doutores da igreja. Sei o que digo, já o vi
antes. Ele se sujeitará a usar aquelas palavras ignóbeis da tradição cristã, e
consumirá tempo precioso se esforçando para obter um ponto de contato com o
evangelho; aceitará em si as rugas e o fedor de alguns dogmas, e finalmente
acreditará ser a própria re-encarnação de Moisés, o novo Moisés, com a mesma
cara de antes – “mas com um melhor coração, enfim!” E tudo isso para esmolar a
atenção complacente deste mundo podre. Pobres diabos-gagos. Seu
último estado tornou-se pior que o primeiro.
“Misticismo
semântico”: expressão Schaefferiana, para designar a ilusão de que
o mero uso da linguagem cristã tornará o nosso discurso cristão, mesmo que sua
carga semântica seja fruto de nossa própria imaginação filosófica. Como se as
palavras dessem a luz ao sentido, e não o sentido às palavras; como
se as meras palavras pudessem criar espírito e realidade, tal qual um “pó de
pirlimpimpim” teológico.
“Misticismo
Semântico”: expressão especialmente desprezada e, até mesmo, odiada, capaz de
fazer queimar o ventre de alguns teólogos. Desprezada, como não? Que pode um
Schaeffer contra um Schleiermacher, ou um Tillich, ou um Bultmann, ou um
Ricoeur, ou um Queiruga, ou um Rubem Alves, ou uma dessas Emílias que
infestam os seminários teológicos? Que audácia! Sem dúvida, admito, precisamos
submeter essa expressão a um tratamento mais sofisticado. Pobre Schaeffer; era
um evangelista, não um filósofo, e muito menos um especialista em filosofia da
linguagem religiosa.
Mas
vou eu em sua defesa: ele conhecia o diabo o suficiente para enxergar o vazio
sem fundo dentro dos olhos de algumas carcaças teológicas contemporâneas. Olhos tão
parecidos com a velha tradição, tão brilhosamente evangélicos, tão
impressionantemente consistentes mas… tão ocos de significado evangélico. Ou melhor, olhos tão
cheios de outros significados, brilhando com luzes infernais, de
sentidos infernais, quentes e vermelhos de revolta contra Deus.
Quem
tem olhos para ver, veja. Isso não é coisa de somenos. Há
crentes que apontam o poder do leão, e respondem tranqüilos: “o evangelho não
precisa de defesa; só precisamos mantê-lo livre.” Pura inocência. Ainda mais
com essa estratégia perversa de roubar o corpo dos outros. Como saber se aquele
leão também é oco? Ou se está cheio com o pai da mentira?
Por isso Miguel descerá do
céu, de novo, e de novo, e de novo, e contenderá pelos corpos de Deus, mesmo
que sejam corpos mortos. E o diabo contenderá também; e os simples ficarão
horrorizados: “porque tanta disputa em torno de um corpo? Porque tantas
lágrimas e violências para guardar essas formas mortas, se o que importa é o
espírito?”
Sim, o que, afinal, se pode
fazer com esses ossos secos e empoeirados? Porquê submeter-se a horas, dias, e
anos, de análise conceitual e reflexão, para demonstrar que a carga semântica
de um certo discurso teológico é, finalmente, uma corrupção enganosa da
verdade, do sentido que o evangelho nos trouxe? Porquê defender com unhas,
dentes e mentes, o teísmo clássico, ou as duas naturezas de Cristo, ou sua
unidade pessoal, ou a universalidade do pecado, ou a ressurreição literal dos
mortos, ou a expiação vicária, e todas essas velharias dogmáticas?
Deus
sabe o porquê. Deus e seus anjos o sabem, sim, mas principalmente, o
diabo.
Convoca pois, o Senhor, anjos,
para descerem de suas nuvens de apatia e desembarcar ali, onde um velho corpo é
possuído, e dar luta ao pai da mentira. Quando aprouver a Deus, este velho
corpo será ressurreto, e seus olhos estarão cheios do Espírito Santo. E seu
rosto brilhará, com ainda maior brilho, e não haverá véu que oculte sua luz.
Até lá, – que saudade! – se
temos apenas estes corpos inertes de tradição religiosa lançados aí, num canto,
que seja. Os anjos chamados, fiéis em busca de compreender, estarão de guarda,
esperando pacientemente pela ressurreição. E nossas espadas analíticas estarão
prontas contra o diabólico misticismo semântico.
*PUBLICADO NUMA QUARTA-FEIRA,
12 JULHO DE 2006, NA AURORA DAS NOVAS TEOLOGIAS IDENTITÁRIAS E DO CLERO
GOSPEL-COACH
“misticismo semântico:
expressão Schaefferiana, para designar a
ilusão de que o mero uso da linguagem cristã tornará o nosso discurso cristão,
mesmo que sua carga semântica seja fruto de nossa própria imaginação
filosófica. Como se as palavras dessem a luz ao sentido, e não o sentido às palavras; como se as meras
palavras pudessem criar espírito e realidade, tal qual um “pó de pirlimpimpim”
teológico.”
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