Hoje
me lembrei do Carnaval. Carnaval é um saco. Moro há muito tempo n’um lugar em
que a festa é reconhecida por sua força popular, uma coisa como uma forma de o ser humano expressar suas emoções, sua história e sua cultura através de alguns valores estéticos, como beleza, harmonia e equilíbrio. Falo de cátedra; odeio carnaval. Não existe festa mais autoritária do que o Carnaval e a
devastação que causa em nome de sua alegria barulhenta.
Mas
gosto não se discute, lamenta-se. Por isso, hoje vou falar de coisa mais séria;
vou falar de amor romântico e de um filme maravilhoso para quem gosta do tema e
também de filosofia: "O Amante da Rainha, filme dinamarquês dirigido por
Nikolaj Arcel, com Mads Mikkelsen (o amante) e Alicia Vikander (a rainha) no
elenco.
Você
acredita no amor romântico? Dito assim parece uma pergunta idiota. Alguns dirão
que pessoas maduras sabem que o amor não existe. Outros, que é diferente de
paixão, sendo esta passageira, enquanto o amor seria algo mais sólido, dado a
parcerias, longa duração e tanto o mais.
Nada
mais pernicioso para a longa duração do que a expectativa de amor romântico
depois de um certo número de anos, diriam os "maduros". Expectativas
assim seriam "coisa de mulher", o que também é uma besteira. Homens
sonham com momentos de paixão com suas mulheres no dia a dia. "Ter uma
mulher" significa exatamente isso.
Supor
que os homens são animais de cerveja, futebol e sexo é não entender nada sobre
os homens. Pensar que os homens só pensam em cerveja, futebol e sexo é a mesma
coisa que pensar que mulher é um ser menos inteligente.
A
suposta simplicidade masculina é tão falsa quanto a também suposta
irracionalidade feminina.
O
tema encanta, apesar de alguns teóricos afirmarem que o amor é uma mera
invenção da literatura europeia medieval (como o Papai Noel), universalizada,
de modo equivocado, pelos autores românticos dos séculos 19 e 20.
Digo
"equivocada" porque, para os medievais, nem todo mundo seria capaz de
viver ou suportar tal forma de amor avassalador. Já para os românticos,
modernos, todo mundo poderia viver essa forma de encantadora doença da alma.
Falo isso sempre pensando em Platão, é claro. E dou uma gargalhada.
Eu
não acredito que o amor romântico seja uma invenção da literatura, mas concordo
com os medievais: muita gente passa pela vida sem experimentá-lo. Uma pena,
pobres miseráveis...
A
narrativa medieval descreve essa "maladie de la pensée" (doença do
pensamento, do espírito), dito no original provençal (um tipo de francês comum
na Idade Média), como um modo de obsessão que arrasta o homem e a mulher,
fazendo com que fiquem presos no desejo de estar um com o outro e atormentados
quando não podem se encontrar, quando não podem se tocar.
Segundo
os medievais, ele ficará horas imaginando o que ela estaria fazendo, pensando,
sonhando, com o desejo de saber todos os segredos de sua alma e de seu corpo
("Tratado do Amor Cortês", de André Capelão, publicado pela editora
Martins Fontes).
A
estrutura ideal supõe o amor impossível, no qual a morte espera os dois ou um
dos dois --e a desgraça do que sobrevive. Quando o amante é amigo fiel do
marido dela, a estrutura dramática encontra seu modo mais perfeito de impasse.
Dirão
os especialistas que o amor romântico cantado nos séculos 18 e 19 fala da
destruição de qualquer forma de vida que não a interesseira, típica da
burguesia e sua alma de "merceeiro", como diria Marx.
"O
Amante da Rainha" tem exatamente essa estrutura. O amante é médico e
confidente do rei e se apaixonará enlouquecidamente, e será correspondido, pela
rainha.
Esse
médico, chamado de "o alemão" pelos dinamarqueses (o personagem é
alemão), é um iluminista (leitor de Rousseau e Voltaire) que crê na superação
da barbárie pelo uso da razão e da ciência. Ela também. Quem diria, heim? E como
se apaixonam... podemos perceber que os que acreditam que tudo poderá ser
resolvido por politica, ciência e reorganização social, também amam. Engraçado
né?
O
amor dos heróis não é apenas construído a partir de "sentimentos"
mas, também, do encontro entre suas almas inquietas com o mundo a sua volta.
Ambos são filósofos de uma época em que a filosofia se revoltou com a estupidez
do mundo (o filme se passa na segunda metade do século 18). Aliás, a filosofia
sempre se revoltará, porque o mundo será sempre estúpido.
Além
da beleza, a delícia de partilhar inquietações filosóficas com uma mulher que
amamos pode ser uma das maiores formas de amor romântico que existe. Infeliz
aquele que não sabe disso.
Como
fazer isso, gostando de Carnaval?