Nenhum relógio antigo. Nenhum canivete suíço. Nenhum jogador de botão. Nenhum cachecol. Nenhuma caneta especial.
Ele não me repassou um livro para lembrar sua importância. Não me chamou para o escritório em separado a fim de antecipar a mínima partilha. Não redigiu uma carta explicando o que era ser gente grande nesse mundo caotico.
Mas herdei de meu Pai o que sou. De meu pai herdei uns alguns.
Quando pequena, eu não o entendia. Hoje, Ele vai comigo, assim calado no dia a dia. O pai liga pra saber se estou com vontade de comer doce.
Tenho dele a risada larga, bonachona, uma gaita que impulsiona o rosto para trás e me pede para fechar docemente as pálpebras.
Nosso pulmão é carregado de sotaque, o pulmão é o nosso código secreto. Respiração. O dom de fazer acalmar via respiração.
Tenho dele o jeito de cortar tomates na tábua, horizontal, absurdamente errado e divertido.
Tenho dele a mesma compulsão pelo atraso: sempre acreditando que posso fazer mais alguma coisinha antes de sair.
Tenho dele as mesmas distrações e desculpas furadas, as mesmas canetas explodindo nos bolsos, a terrível a mais terrível de todas; não saber atravessar ruas. Não sei. Não sei calcular o tempo do carro com o tempo da caminhada até o outro ponto. Tenho pensamentos sofisticados demais enquanto estou andando. Não vejo nada.
Tenho dele o mesmo ímpeto de curar a raiva com uma caminhada pelo bairro.
Tenho dele a lembrança da barba da juventude, o bigode, e a tendência de levantar as golas das camisas.
Tenho dele a mania por sentar em balcões e experimentar pastéis em cidades estranhas. Não tomar leite nelas.
Tenho dele a mania de estar sempre na cozinha e os olhos puros de medo.
Tenho dele a vontade de cheirar o cangote dos filhos.
Tenho dele a mania por esculturas, madeira de demolição, de cavalos e Dom Quixote.
Tenho dele a compulsão por riscar livros e escrever diários por códigos.
Tenho dele o dom de perder dinheiro e juntar amores.
Tenho dele o costume desagradável de gemer diante de um prato favorito. Huummm. Roceira como só.
Tenho dele a sublime certeza de que a fé do Filho de Deus é a melhor coisa e oro quando vejo o mar ou uma criança sorrindo ou as pessoas chorando no apelo na confissão por Jesus. Escolha.
No momento em que viajo de avião, acabo me protegendo do frio transformando o paletó em cobertor. O casaco fica invertido, de frente para mim, com as mangas cruzadas nas minhas costas.
Aquele casaco é também meu pai me abraçando.
Bom ter Pai e pai.
Meu Pai está espalhado pelo meu caráter. Preciso em tudo dele. A garantia de amor, justiça, santidade e fogo. Nem uma vírgula emprestada se dá se não for assim, desse relacionamento que não vai ter fim. O que é uma lembrança para quem tem toda a eternidade?
Cada gesto que vim a aprender ao longo da vida é o esforço arredondado de copiar sua letra e repassar seu temperamento ao papel vivo da vida. Caderno de couro e carne. Retrato.
Ele está dissolvido em meus dias. Invisível e forte como o vento.
No momento em que escrevo, penso, acabo me lembrando das palavras doces, dos conselhos das historias que penetraram minha alma, espírito e carne. Alias mudança. Domínio. A coisa mais surpreendente de aprender. Dependência. Às vezes sinto necessidade de conforto durante a dura realidade do dia a dia que mais me choca do que surpreende. Uso seu manto de bondade como cobertor. O manto fica envolto a fim de esconder o Passarim. Proteção.
Aquele manto é também meu Pai me abraçando.
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