3 de jun. de 2018

Nunca tive All Star de cano alto



Bom, voltando: a pessoa se sentir forte, com um pisante rasteiro, rasteiro no sentido de rente ao chão, de raiz, de perto da rua, de perto da vida, isso pra mim sempre foi o túmulo da psicanálise freudiana. Um ser humano de tênis é um ser humano sem problemas ou traumas de Sófocles. Alguém que certamente nunca comeu um Toblerone inteiro assistindo a “O solista” sem dormir ou teve uma raiva assassina do amiguinho do seu filho de dez anos que não convidou ele pra festa. Não tem aquela música dos Smiths? “Some girls are bigger than others”? Então. Pra mim é: quem tem tênis all star de cano alto é bigger than others. O tênis é a escrita simples, é o Manoel de Barros, o Rubem Braga, é a democracia, o amor correspondido, é o cabelo repartido e humilde no domingo de culto. 
alto. Não que eu não tenha tentado. Tentei muito. Usar tênis sempre me pareceu o nirvana da autoestima no departamento “look do dia” pra desafiar um pouco YSL.Falando nele estou completamente apaixonada, genio, precoce, carente, lucido, plexo solar aberto, sofreu tudo, e mudou muita coisa que usamos como moda, inclusive esse termo "look do dia foi cunhado por ele". A pessoa se sentir forte, e grande, grande no sentido inverso, grande pra dentro, grande querendo dizer nobre, nobre querendo dizer bondoso, transcendente — melhor parar porque quando eu começo a expandir o pensamento assim nessas tentativas de ser compreendida vou mais longe do que os stalks que faço no Instagram: às vezes termino em Descartes, às vezes tô debruçada sobre a vida da irmã do meu marido, ativista feminina, uma coisa linda. 
Na infância, não passei pelo Conga e pelo Bamba, e já adolescente fui devota primeiro do Reebok e depois do New Balance e em seguida do Nike Shocks (é assim?) na mesma proporção em que amava Djavan revezava o projeto de pedir meu pai pra ir na matinê da Club E entre Feriados em sítios. A vida no século XX, parceiro, era tão doce e profissional quanto o mar do Caymmi.
Até que eu cresci, ou melhor, não cresci, porque o metro e setenta — E SEIS!!— já me acompanha desde a milhões de idade, e a vida passou a girar em torno de conseguir dois ou quatro centímetros angariados da forma mais discreta possível. Nunca consegui usar scarpin, nem sou boa de andar elegantemente com salto agulha ou plataforma, mas fui me virando com aqueles mocassins e mules covardes e sobrevivendo com as alpargatas possíveis, porque, ao contrário daquele povo superior e evoluído da comunidade Tênis Futebol Clube, eu precisava de um saltinho tipo o sertanejo pra turbinar a confiança nos meus próprios toques, assistências e chutes a gol. Tem também o sapato bicolor da Chanel, que era bicolor,ou a ponta mais escura, pq ela tinha pé grande, e, o bicolor ajuda na diminuição do pé em imagens tipo “tela maior”. 
Mas por que tudo isso? Qual a relevância de questão tão frívola quanto uma categoria de sapato diante do Moro comendo pipoca numa pré-estreia de um filme em que ele faz o Batman e também diante das tragédias brasileiras, como os naufrágios e as recorrentes violências sofridas pelas mulheres nos transportes? Por causa da Rosa. Por causa da Laís. Por causa do cinema. Porque às vezes o trabalho e a vida se encontram num lugar mágico e misterioso que não há razão científica ou método de preparação russa que dê conta de tamanha comunhão entre a vida de todo mundo. Porque eu vi um filme chamado “Como nossos pais”, em que, aos trinta e poucos no CPF e no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo do jogo, fui obrigada a ver as agruras das mulheres do nosso tempo. Durante o filme em cima de um par de tênis lona branco e surrado de nome All Star, e sobre ele construí uma visão que iluminou minha vida inteira pra trás e pra frente e me deu a chance de fazer tudo diferente.
Eu sei, tá abstrato. Tô ficando com esse problema. Um pouco de elemento terra, então: A Beatriz bailarina and missionária “gênia”, realizadora de feitos incríveis tipo trabalhar no terremoto do Nepal. Me falou do sertão.Me apaixono. Pela história e pela Valentia de ir receber amor. Passo no teste. Fico feliz. Fico feliz. Fico feliz. Vou deixar a repetição três vezes mas poderiam ser dez. Enfim. Ensaio. Conheço os outros atores. Organizo minha vida pra ficar 15 dias meses em São José do Belmonte e faço combinados firmes e amorosos com meu filho e marido. Eles são absurdamente lindos. Tudo caminha relativamente bem até que na primeira coisa que minha irmã manda por na mala, foram eles...Ali estavam,à espera da pessoa que eu me tornaria quando os incorporasse, à espera de uma retidão de caráter que só a proximidade com a terra é capaz de oferecer. Do chão, ninguém passa.
De posse dos pisantes da missionária Mi, de alguma forma da Bia, e de alguma forma também meus — Carina e Nice no subtexto —, encarei uma jornada vertical que me fez voltar do Sertão com um prêmio de mãe de outros- que meu filho me deu- e, mais importante, que me fez voltar pra Belo Horizonte com um prêmio de pessoa. Tenho recebido um amor por parte das mulheres que viram aquela Camila que até hoje só havia recebido do meu filho e marido: um amor de cumplicidade absoluta e fechamento incondicional, como quem diz “eu sei o que você tá sentindo, eu sei como é, que bom que eu não estou sozinha, vem cá, vamos nos abraçar”.
No finalzinho da viagem, o tênis ficou digno de lixo, mas meu marido disse que era bom eu ficar porque eles estavam lindos, como um ato simbólico de quem agora vai pra fase 2, verdade no comando e prazer profundo nesse novo jeito de viver, mesmo que doa um pouco no começo. Imitona que sou, fiz igualzinho aqui em casa, só que, ao contrário da missionária, o que mandei embora foram os sapatos da Dorothy, aqueles brilhantes, mágicos e reluzentes que a levam pro Mundo de Oz. Aos 32 eu quero a vida do All Star: pé no chão, problemas de frente, e amores imperfeitos.Prova do Titulo!
Eu estou numa vida cheia, com tênis rasgado e coração costurado e você me dá isso.


ps:esse foi escrito quando cheguei do Sertão. algumas pessoas morreram no caminho ate aqui. 

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