27 de mar. de 2013

A ela

Quando a menina nasceu, vi uma sombra escura ser apagada pelo brilho que entrava pela janela, era essa coisa de gente que foi amada primeiro, tinha uma missão, um propósito, a sombra que saiu do quarto, das pessoas que estavam ali, parecia sombra de árvore, mas veio com um vento gelado em pleno verão, como se invertessem o dia, vi um filme quando mocinha, o dia em que a terra parava, era a mesma sensação, mas a menina cresceu, diferente dos pais, não quis ficar na margem,era amor pacote pessoa, preferia tocar o coração,tocava também um violão blimblão, só que tocava mal a desengonçadinha, caminhando e cantando e seguindo a canção, dançava o clássico balé, tocando; arrebentava as cordas que davam em cheio no rosto, eu sempre a achei muito magra, a arrebentação sangrava a testa, coisa feia de ver assim ferida, se ferindo, cansada como um passarinho que escapou das dentadas de um cachorro bravo, chamado vida, cada dia mais magrinha como se perseguido pela morte, que ninguém se incomodava com ela, mesmo adolescente nunca atrapalhou os vizinhos, parecia um bichinho, nunca tomou coisa alguma, nada que fizesse bem nem mal, eu fazia feijão, ela não comia, macarrão, nem tocava, era magrinha como uma pena e a cada dia que passava parecia lhe sumir um dos lados, até que um dia acordei mais cedo ouvindo um piu de passarinho, dizia a Bá quando era viva e morava aqui conosco sempre sentada na soleira da porta esperando passar o Baiano, o vizinho de olhos doces, a única alegria, eu nunca me importei, nem ela, era um moço que entendia a miséria da vida, mas a Bá ficava ali e iam sumindo aqueles lados da menina, até a nossa memória ia apagando pelo costume de não ver, um dia ficou só o fiapo do papel visto de lado e se eu quisesse falar com ela tinha que esperar um assobio ajudado pelo vento que entrava pela janela, porque a boca gastava todo o sopro pra emitir uns cicios vagarosos quando ela precisava de alguém, fosse eu, fosse outro que o mudasse de lado, com o tempo fui colando o lado que ainda aparecia na parede com cola branca, antialérgica que era pra ver se durava, Baiano passou por aqui e sugeriu um spray que fixava grafite, mas eu achei um exagero de caro e não precisava disso de fixar os traços, era mais uma questão de cor, mas fixador de cor o Baiano disse que não existia, e a mãe dela na sala de ferramentas disse que nunca comprou uma coisa destas, devia ter em outro tipo de loja, de material para artistas, não coisa de peão de obra, que ali não haveria de ter nada que iludisse ninguém, só coisas úteis, nada de bobagens, nada destas esquisitices, nem corda de violão, só corda séria, corda de verdade, não adiantava insistir, eu não insisti, que eu não sou bocó, deixei a garota colada na parede até que veio uma chuva quando a janela estava aberta e molhou-a tanto que não adiantava mais querer salvar, embrulhei bem dobradinha, depois de secar ao sol, ficou enrugada, desapareceu o sorriso num trejeito de tristeza perene, parecia que gritava pra alguém que sabia escutá-la, o Baiano sugeriu que eu passasse a ferro para voltar à forma original, mas eu que conheço estas coisas sei que nunca voltaria, forrei uma caixinha com papel pardo, perfumei um pouco pra ajudar a não dar cheiro, e guardei no armário em um lugar bem silencioso que é pra eu esquecer, de vez em quando abro a porta devagar, toco na caixinha pra saber a temperatura, uma vez abri e vi que continua lá, mas se alguém pergunta onde ela está, eu só digo que foi pra longe, num lugar que eu nem sei explicar, porque tenho vergonha de contar que ela era eu.

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