Durante a sua carreira, Bob Dylan criou histórias de amantes que não conseguiam trocar qualquer palavra porque uma das partes não queria entender sobre a realidade misteriosa em que se encontravam.
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"Mas se os argumentos bastassem para tornar os homens bons, eles teriam feito por merecer grandes recompensas, como diz Teógnis, e as recompensas não faltariam. Todavia, embora as palavras pareçam ter o poder de encorajar e estimular os jovens de espírito generoso, e preparar um caráter bem-nascido e verdadeiramente amigo de tudo que é nobre para fazê-lo adquirir a virtude, elas são impotentes para incutir a nobreza e a bondade na maior parte das pessoas. Com efeito, o homem comum não obedece por natureza ao sentimento de honra, mas unicamente ao medo, e não se abstém de más ações porque elas são ignóbeis, e sim por temer o castigo. Orientada pela paixão, esse tipo de gente anda buscando seus prazeres e os meios de conseguí-los, evitando os sofrimentos que lhes são contrários, e nem ao menos fazem idéia do que é nobre e verdadeiramente agradável, já que nunca experimentaram tais coisas. Que argumento poderia regenerar tais pessoas? É difícil, e talvez impossível, erradicar pelo raciocínio os traços de caráter que se incorporaram à sua natureza. Talvez devamos nos dar por satisfeitos, se conseguirmos dar algum traço de virtude a essas pessoas, quando dispomos de todos os meios capazes de influenciar as pessoas no sentido de torná-las boas".
Aristóteles, "Ética a Nicômaco"
"Sugar Baby", a última canção do álbum "Love and Theft" (Amor e Trapaça), de Bob Dylan (que fará 80 anos de idade no próximo dia 24 de maio), fala sobre a despedida de um homem à sua amada. Ambos se encontram num dia de sol abrasador e a luz ofusca a visão do eu-lírico:
"I got my back to the sun 'cause the light is too intense
I can see what everybody in the world is up against
You can't turn back - you can't come back, sometimes we push too far
One day you'll open up your eyes and you'll see where we are".
(Estou de costas para o sol porque a sua luz é muito intensa/ Posso ver o que todos neste mundo estão contra/ Você não pode negar, nem pode voltar, algumas vezes fomos longe demais/ Um dia você vai abrir os olhos e vai ver onde está)
Logo no início, temos uma situação de incomunicabilidade. O homem tenta dizer alguma coisa à amada. Não é uma coisa qualquer: ele viu algo que todos evitam, algo que, se for dito com todas as letras, a mulher certamente negará. Seja lá como fôr, o sujeito tem plena consciência de que sua intenção será pervertida numa incompreensão e, principalmente, numa ingratidão dos diabos. Mas ela não pode negar o fato de que tal revelação existe e que, algum dia, saberá realmente o que está acontecendo ao seu redor. Até lá, o homem esperará a decisão dela, afastado de seu amor, vendo qual será o limite da amada, ao fazer a sua escolha numa vida solitária, como explica no refrão:
"Sugar Baby get on down the road
You ain't got no brains, no how
You went years without me
Might as well keep going now".
(Querida, prepare-se para enfrentar a estrada,/ Você não tem jeito mesmo,/Ficou anos sem a minha companhia/ Pode muito bem ficar sozinha agora)
Dylan canta os versos com a voz da experiência, a voz da pessoa que viu um fato desses acontecer várias vezes: não há lamento ou sequer amargura. Na verdade, é justamente a maturidade na sua voz que transforma a canção em um carinhoso conselho de um homem para uma mulher que, se continuar a trilhar o caminho de forma errada, pode se dar muito mal. Dylan sabe do que está falando. Durante a sua carreira como cantor e compositor, ele criou histórias de amantes que não conseguem trocar uma única palavra porque uma das partes não quer entender sobre a realidade misteriosa em que se encontram. Sempre havia alguém - seja um homem ou uma mulher - que não se arriscava nas experiências de entrega que o amor exige em um relacionamento. Os exemplos em sua obra são vários: desde todo o Blood On The Tracks, passando por "Like a Rolling Stone" e "Just Like a Woman", terminando em "When The Night Comes Falling From The Sky" e "Highwater". No mundo segundo Bob Dylan, o Mal está sempre disposto a destruir alguém inocente, com as formas mais inventivas e sutis possíveis; o pior é que a pessoa pode estar consciente da sua perdição, como a moça que grita ao amante de "Highwater", em plena enchente apocalíptica - "Você não percebeu que estou me afogando também?" (Can´t you see I´m drowning too?).
O Mal, o Erro e a Mentira infiltram-se no coração do ser humano por meio de truques tão bem feitos, que ninguém percebe onde começa a realidade e onde começa a alucinação. "Some of these bootleggers, they make pretty good stuff" - Alguns desses falsários fazem coisas muito boas. Como, por exemplo, a tia Sally que não é a tia Sally e com quem o homem estava tendo um caso por uns tempos. Ou seja, ele também caiu no universo de intriga e engano: tem pleno conhecimento que os segredos podem ser guardados onde queremos, mas, se isso acontecer, seremos também obrigados a lidarmos com memórias que nunca aprenderemos a viver para expurgá-las, memórias de um passado que tentamos esquecer e não podemos, porque é nada mais, nada menos que o próprio pecado.
O narrador em "Sugar Baby" é um pecador. Conheceu as trevas como poucos. Por isso, seu conselho à amada não é para recuperá-la em seus braços e viver uma vida feliz com ela. É para que a moça não siga a mesma sina de perdição, para que não ande mais pela cidade sombria (Darktown) porque, como todo mundo sabe, "there ain't no limit to the amount of trouble women bring" - não há limites para o monte de problemas que as mulheres trazem. Talvez por trás da resignação do conselho esconda um quieto desespero, o desespero daquele que sabe que, por causa do amor que sente pela mulher, eles nunca mais se encontrarão. Ele não deixa de dar a dica que o amor, apesar de tudo, é uma coisa boa: "Love is pleasing, love is teasing, love's not an evil thing". O amor excita, o amor estimula, o amor não provoca o mal - mas ele só pode usufruir deste amor no exílio porque é bem provável que o objeto amoroso já foi para o fundo do abismo, procurando e desejando o amado apenas na terra devastada de sua mente.
"Aquele que começa a amar também começa a se despedir", já dizia Santo Agostinho em seus comentários ao Salmo 64, e a procura pela verdade inicia-se justamente no momento em que o ser humano desprende-se das coisas terrenas e, por mais que isso seja dolorido, começa a amar o Ser que lhe deu a vida. Este é um dos atos mais nobres que um homem pode realizar e que confirma a sua natureza mutável, capaz de aceitar a redenção, com todas as suas sombras e luzes. Entretanto, o exílio das coisas mundanas não significa uma fuga da realidade; ao contrário, é uma maneira de aprofundar-se cada vez mais nos abismos do real e tentar compreender a ambiguidade que nos cerca no cotidiano. Para ser exato, trata-se de um exílio dentro da realidade, a bios theorétikos que Aristóteles afirma ser a vida contemplativa do spoudaios, o homem maduro, que distancia-se da desordem existente para encontrar uma ordem tanto no mundo, como na sua alma. O eu-lírico em "Sugar Baby" é um spoudaios: o seu conhecimento da vida, até aquele momento, o leva a aconselhar a pessoa que ama a evitar os mesmos passos e, ao mesmo tempo, sempre estar aberto ao mistério da existência, uma vez que "você deve estar preparado para tudo aquilo que ainda não conhece". O spoudaios, seja numa canção de Bob Dylan, seja na ética aristotélica, seja no Eclesiastes bíblico, está sempre na procura pela verdade e não desistirá tão fácil. O problema na procura é que ela deveria ter um fim, mas descobre-se que o fim é tão incerto quanto o caminho que se trilha e que o verdadeiro sentido está na procura.
Para muitos, isto pode parecer que a vida em si - com o seu começo, meio e fim - não tenha um sentido, um rumo predeterminado. Ela tem e, ao mesmo tempo, não tem. Este paradoxo é um dado intrínseco da estrutura da realidade e, consequentemente, da própria vida humana: há um destino, com sua fatalidade inexorável, as sinas que todos temos de suportar, mas há também o dom do livre-arbítrio, em que cada um de nós pode fazer escolhas que marcarão nossa existência e a tornará imprevisível. Este dom não pode ser desperdiçado: o ser humano é alguém com mais limites do que possibilidades; suas ações sempre estarão condicionadas a uma circunstância, mas que pode superá-las através do senso de transcendência que qualquer consciência humana possui. O que seria este senso de transcendência? É quando o homem pode ver o passado no presente, o presente no passado, talvez prever alguma coisa do futuro e então agir para modificá-lo - para quando chegar este futuro ele recuperar algo do passado. É neste ponto imutável do espírito que se dá a grandeza da humanidade; mas, apesar de imutável, a alma não se deixa ficar imóvel; ela continua a sua procura pela verdade.
E o que é a procura pela verdade? É o movimento da alma dentro de uma determinada existência, limitada por um determinado tempo e um determinado espaço (aquilo que chamamos de História), rumo ao Além que é a sua fonte e origem. Portanto, por ter mais amarras do que propriamente uma liberdade completa, a alma enfrenta, durante a procura pela verdade, uma série de obstáculos e de tensões luminosas (que Platão chamava de "metaxo") que, por mais contraditório que isso pareça, é justamente o impulso principal que motiva a jornada. Como bem explicou Eric Voegelin neste trecho de Order and History V, que deveria ser guardado na memória do leitor como um conselho de pai:
"A procura pela verdade é um movimento de resistência contra a desordem que prevalece; é um esforço para afinar novamente a existência concreta e desordenada na existência da tensão da realidade, uma tentativa de um novo campo social de ordem existencial em competição com os campos que clamam que a verdade tornou-se duvidosa. Se a procura for bem-sucedida em encontrar os símbolos que expressarão adequadamente a nova e diferenciada experiência de ordem, se então encontrar pessoas que aderem à nova verdade e às formas duráveis para sua organização, teremos certamente o surgimento de um novo campo social. Entretanto, o relato destes eventos pessoais e sociais não exaure a estória que deve ser contada; ao contrário, a consolidação bem-sucedida de um campo de ordem diferenciada cria novas estruturas na História, através de suas relações com outros campos sociais. Se a procura for um sucesso, serão impostas nos outros campos as características não existentes de falsidade ou mentira; esta imposição provocará movimentos de resistência daqueles que aderiram à velha verdade, assim como das descobertas de verdades alternativas, seja a velha ou a nova verdade; também deparar-se-ão com os obstáculos sociais de indiferença e ignorância espiritual; e encontrará os movimentos de ceticismo atiçados pela nova pluralidade de verdades. Assim, a procura não é apenas o seu próprio começo. Ao reconstruir os campos sociais em relação à verdade da ordem, ela marca o começo de uma nova configuração de verdade na História. Como a procura do peregrino é acompanhada pela sua consciência do evento como um começo nas dimensões pessoais, sociais e históricas da ordem, o peregrino tem de contar uma estória e tanto. É a estória de sua experiência de desordem, da resistência atiçada nele pela observação de casos concretos, da sua experiência de ser arrastado na busca pela verdadeira ordem, através de um comando que veio da tensão luminosa da realidade, da sua consciência de ignorância e inquietude, de sua descoberta da verdade, e das consequências da desordem descontrolada em relação à ordem que ele experienciou e articulou. O evento como um começo é a estória de uma tentativa de impor a ordem numa terra massacrada pela desordem" (Order and History V - págs 39-40).
E o que será esta estória que inicia a procura pela verdade na História? É a estória contada por Deus, que se revela nos símbolos que o homem articula dentro da tensão da realidade e que, se recuperadas em seu sentido original, mostram a lógica de uma História. Mas esta lógica não tem um sentido acabado, como um sistema; a procura pela verdade é um movimento que vai para a frente, com a intenção de descobrir o que realmente aconteceu no passado. Em um mundo dominado pela perversidade, a procura pela verdade é também um empreendimento de restauração. Por isso mesmo, a procura em si mesma nunca termina: ela é, se podemos parafrasear o verso batido de Vinicius de Moraes, infinita enquanto dura.
Mas não é este mesmo o significado do exílio dentro da realidade, motivado pela angústia de ver um amor que pode ir embora a qualquer momento? "Every moment of existence seems like some dirty trick/ Happiness can come suddenly and leave just as quick" - “Cada momento da existência parece algum truque sujo/ A felicidade pode aparecer de repente e ir embora rapidamente”, canta Dylan, com pleno conhecimento de causa. Mesmo sendo um exilado, o amor só pode existir se houver um relacionamento entre duas pessoas - e ainda assim, este relacionamento está carregado de riscos. O homem quer explicar à amada sobre as contradições desta vida, sobre a evidência de que nem tudo é certo, que vivemos num mar de incerteza em que o barco onde estamos não possui uma vela, um leme e até mesmo um remo. Mas ela não aceita; recusa o conselho; o homem sabe disso desde o primeiro momento; ele sabe também que, se continuar assim, as coisas vão sair pior do que já estavam - "Try to make things better for someone, sometimes, you just end up making it a thousand times worse" (Ao tentar melhorar as coisas para alguém, muitas vezes você as torna mil vezes pior).
E como o homem tem de viver nesta condição de incerteza, as únicas saídas são o exílio, o silêncio e a astúcia para, algum dia, retornar aos seus pares e transmitir o amor que aprendeu durante a sua procura pela verdade. Ainda assim, como sabemos, a procura não terminou: é no incessante movimento de ir e voltar do deserto da meditação da alma para o convívio com os seres humanos que a procura pela verdade fica cada vez mais plena. Quem explicou com precisão a complementariedade deste movimento foi - por incrível que pareça - o cético e iluminista Edward Gibbon, o autor de "Declínio e Queda do Império Romano", ao afirmar: "A solidão é a escola do gênio, mas a conversação facilita o entendimento". É na solidão que a alma pode reencontrar-se com as experiências que deram um sentido para sua existência; mas, ao mesmo tempo em que ela pode ser libertadora, para muitas pessoas apresenta-se como um fardo. A solidão é própria de quem quer enfrentar a vida do espírito; própria de quem quer se tornar uma pessoa profunda e não apenas uma pessoa inteligente; própria de alguém que sabe que o ser humano é falível, mas tem uma força que não é apenas sua e que vem de algo que lhe sopra, enquanto o barco sem vela, sem leme e sem remo ruma pelo oceano.
O problema é se alguém consegue suportar a solidão. Poucos conseguem, como o spoudaios de "Sugar Baby". Sim, ele se despede de sua amada, sem deixar de dizer a ela que o seu mundo não será mais o mesmo sem a sua presença:
"Your charms have broken many a heart and mine is surely one
You got a way of tearing a world apart, love, see what you done
Just as sure as we're living, just as sure as you're born
Look up, look up - seek your Maker - 'fore Gabriel blows his horn".
(Seus charmes quebraram vários corações e o meu é certamente um/ Você tem uma maneira de estraçalhar com o mundo, querida, veja o que fez/ Tão certo que você está viva, tão certo que você nasceu/ Olhe, olhe para cima, procure o seu Criador, antes que Gabriel assopre a sua trombeta)
Aqui, fica claro o que o narrador viu na luz do sol, no início da canção. Ninguém quer encarar a sua revelação, principalmente a amada: o fato de que vivemos em um mundo onde os seres humanos abandonaram Deus. "Olhe, olhe para cima, procure o seu Criador, antes que Gabriel assopre a sua trombeta" - tente encontrar Deus antes que o Fim se aproxime. Dylan não hesita em ser apocalíptico, no verdadeiro sentido do termo; o homem abandonou Deus e, por isso, Ele contra-atacará para mostrar que tudo neste mundo é Seu e de mais ninguém. "Sugar Baby" é uma canção de adeus porque, afinal de contas, o eu-lírico deixa a alma de sua amada entregue a Deus. Não é à toa que a palavra "adeus", em português, pode ser lida também como "A Deus": aquele que começa a amar, também começa a se despedir, porque o ser humano deve ficar sozinho para encontrar a tensão da partícula divina - o Nous de Platão e Aristóteles a rivalizar com o Logos do Evangelho de São João -, que lhe permite contar a estória dentro da História, participar de sua narrativa através do dom do livre-arbítrio e ficar acima dos instintos animais que o puxam para o Mal, o Pecado, o Erro, a Mentira e a Ignorância. A procura pela verdade é uma procura que não para, uma procura rumo ao fim que é o começo, ao fim de um lugar que deve ser conhecido como se estivéssemos lá pela primeira vez, como diz T. S. Eliot no final dos Four Quartets:
With the drawing of this Love and the voice of this Calling
We shall not cease from exploration
And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.
(Com o esboço deste Amor e a voz deste Chamado/ Nós não devemos terminar a procura/ E no final de tudo aquilo que procuramos/ Será para chegar onde começamos/ E conhecermos o lugar pela primeira vez)
A procura pela verdade é o próprio sentido da vida, é o barco sem leme, sem vela, sem remo, no meio de um mar sinuoso, cheio de pecado. Há um sopro que o movimenta, mas nunca saberemos se é o sopro de Alguém ou apenas o sopro de um mero vento. Pode ser o Tudo ou o Nada - e entre estes dois temos de fazer nossas escolhas. Se optarmos pelo Nada, seremos fracos e covardes, como o Drummond depois de "A Máquina do Mundo", que rejeita o mistério da eternidade pela certeza das pedras mineiras e pela mesquinharia da vida cotidiana; se optarmos pelo Tudo, seguiremos a aventura heroica da fé, que nos ajuda a suportar a nossa finitude, a nossa limitação e as nossas dúvidas. Mas, para realizar esta aventura, muitas vezes temos de deixar certas pessoas que estimamos, para que elas sigam o seu próprio rumo. A vida é uma jornada solitária e temos de aprender a conviver com a solidão porque, de certa forma, ela é nossa única companheira, no nascimento e na morte. Não podemos desistir de procurar, mesmo que tudo pareça desolado: será na procura pela verdade de cada um que outras procuras surgirão, criando um remanescente de Israel, que recuperará a Ordem e assim continuaremos a nossa viagem, sempre indo em frente, para reencontrar o que perdemos.
Martim Vasques da Cunha